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É complexa a relação entre ver e fazer arte. Não é de dependência o vínculo entre as faculdades – é, sobretudo, de retroalimentação. E em seu ciclo perfeito, não nos deixa perceber onde começa uma e termina outra. Afinal, é o dom de enxergar que conduz a arte ou é o dom da arte que conduz o enxergar?
“Nenhum grande artista vê as coisas como realmente são”, defendeu Oscar Wilde, ou “caso contrário, deixaria de ser um artista”. Rubem Alves, por sua vez, vaticinou que “o ato de ver não é coisa natural – precisa ser aprendido”. O mais universal de todos, Antoine de Saint-Exupéry tatuou no mundo das letras um dos aforismos definitivos do pensamento humano: “o essencial é invisível aos olhos”. Na construção desse enxergar subjetivo, a arte é o vidro a ser moldado de acordo com a visão que se quer ter da realidade. Ora é espelho, no afã de traduzir sem interferência o que o olho nu testemunha. Ora é lente, que ajusta ou colore a dureza do mundo, para que o vejamos mais belo. Também tem vez que – acima de quase tudo, aliás – arte é lupa, a fim de fazer emergir, destacar-se do mar cotidiano de tédio e pressa aquilo que ninguém tem tempo ou interesse de olhar atentamente. Espelho, lente e lupa são, pois, vertentes da arte de Éder Oliveira, seja esta razão ou fruto de seu olhar sobre a vida: sua linguagem reflete a si mesmo e à realidade que o cerca; reconfigura o modo de enxergar seus retratados; os amplia até que ninguém possa negá-los a existência.
Nascido em Timboteua, interior do Pará, o pintor fez das tintas a janela para o cotidiano do homem amazônida, em especial o caboclo marginalizado que – graças aos estigmas e à desigualdade de oportunidades, invisível à festejada meritocracia – é habituée dos cadernos policiais de Belém. A ressignificação sensível desses personagens urbanos chamou a atenção da crítica e de consumidores da arte contemporânea de modo geral, e não tardou para que o trabalho de Éder figurasse em alguns dos mais representativos espaços para esse tipo de produção – como o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, e a Bienal de Artes de São Paulo. Sobre a experiência na capital paulista, ele deixa entrever a felicidade do reconhecimento. “É muito significativo ter o trabalho exposto no Pavilhão [Ciccillo Matarazzo]. Saber que divido esta experiência com artistas como Alberto Bitar, Armando Queiroz, Emmanuel Nassar e Guy Veloso, que também já tiveram trabalhos na Bienal, me deixa honrado”. Mais que ser reverberado na mídia, o mais especial foi “ver diferentes pessoas discutindo e comentando sobre o trabalho, independentemente da apropriação conceitual que fizeram. Foi o grande ganho pro desenvolvimento da minha produção, que muitas vezes se dá de forma solitária”.
Até o reconhecimento e sua própria compreensão artística, porém, um longo caminho foi trilhado, cujo início aponta ao contato de menino com os traçados. “Desde criança, me lembro de ter uma predisposição ao desenho. Esse foi meu único elo com as artes visuais até a entrada na universidade, seja pela criação no interior do Pará ou pela diferença cultural que me privaram de uma relação mais próxima com as artes formais. Antes do curso, eu era apenas reconhecido entre meus amigos pela facilidade que tinha para desenhar”, rememora ele. A entrada na Academia ofereceu, de uma vez, um vasto arcabouço que intimidou à primeira vista – mas também despertou curiosidades e certezas. “Foi difícil lidar com o acúmulo de informações, conceitos e técnicas totalmente novos para mim, mas foi a primeira vez que vi um sentido para aquilo que fazia informalmente, sobretudo ao conhecer os grandes mestres, que me fizeram aspirar a, um dia, ser pintor”, avalia. “Não diria que a formação moldou meu olhar, mas com certeza sou grato a essa apresentação. Foi e é muito importante o diálogo com os professores, que mais tarde se tornaram meus amigos e colegas de ofício, para a compreensão do meu atual campo de atuação e da possibilidade de traduzir no gesto artístico aquilo que trazia comigo”.
Também seguiu o mesmo caminho a descoberta de um detalhe clínico que influenciaria em definitivo a maneira como a pintura de Éder se desenvolveria. O artista, que é daltônico, percebeu ainda na infância que não enxergava como todo mundo. “Logo cedo tive consciência de que havia algo diferente na minha percepção com as cores; mas, de certa maneira, por ter no desenho a grafite minha única forma de ação estética, isso não atrapalhava meu cotidiano nem me impediu mais tarde de entrar num curso de Educação Artística”, avalia. “Foi na Academia que as dificuldades com as cores começaram a se configurar como um ‘problema’ – com as manchas avermelhadas e esverdeadas que apareciam nos meus trabalhos e que nunca cheguei a ver, por exemplo. Algum tempo depois confirmei minha condição por meio de um exame médico e fiquei assustado ao perceber o alto grau do meu daltonismo e pensar o quanto isso tinha sido irrelevante até ali”. Apesar do baque, ele considera que o jeito peculiar como vê as coisas acabou por influenciar a identidade do que realiza artisticamente. “Foi um grande choque, esse fato marcou muito minha forma de perceber as coisas ao meu redor. No que diz respeito à minha produção, serviu principalmente para me desprender de um naturalismo que logo no início buscava de forma vã alcançar na pintura”.
O interesse por desenhar pessoas já havia se manifestado na adolescência, mas foi só na vivência universitária que os primeiros retratos vieram. Lá pela metade do curso, a ideia do que fazer tomou corpo real. “Inspirado pela história da arte pensada por um viés clássico, eu queria buscar outra forma para meus retratos, um contraponto a uma linguagem que originalmente se estabeleceu sendo destinada às classes mais abastadas. Assim passei a buscar rostos anônimos, pessoas com uma fisionomia comum, que trazem na pele a herança genética que forma o povo amazônico – em geral a classe popular, a base da pirâmide social”, conta.
Apesar de ser vizinho [e partícipe] dessa realidade, foi folheando os jornais que Éder se deparou com aqueles que passariam a ser seus modelos. “Infelizmente, por questões sociais e políticas diversas, apenas o espaço dos cadernos policiais é destinado quase que exclusivamente a essas ‘pessoas comuns’”. Apesar do forte discurso social entranhado na sua expressão, é também muito íntima a sua arte. Não à toa, o pintor considera seus trabalhos autorretratos, em certo nível. “Trabalhando com a imagem de ‘anônimos’, minha história de vida se confunde com o universo que envolve a maioria das pessoas que retrato. Assim como eu, muitas gerações migraram e migram, para Belém ou outra capital, em busca de melhores condições de vida, seguindo uma lógica histórica global. Mas não acho que as raízes étnicas e geográficas sejam as únicas coincidências entre mim e essas pessoas. A convivência nas periferias, os relatos e conversas cotidianas me tornam ainda mais próximo dos jornais que folheio tentando entender meu entorno”, analisa.
Sobre o papel transformador do trabalho que realiza, o artista defende que a arte não deve estar sujeita a imposições estéticas. “Interpretada, ela toma parte do cotidiano e age de forma ativa nas pessoas. No caso de trabalhos de arte engajada, essa ação pode ser ainda muito mais intensa, seja na sua utilização como ferramenta tátil, atraindo pessoas ao seu processo de construção; ou, inversamente, na apropriação humana para a construção do objeto artístico e posteriormente no resultado que isso pode gerar, caso em que procuro tangenciar meu trabalho”, pondera. Esse processo é muito mais intenso quando a obra sai do ambiente onde só se relaciona com o consumidor habitual dessa linguagem, e passa a figurar nos muros e paredes da urbe. “Ao contrário das obras produzidas para serem expostas em galerias e outros espaços institucionais, quando faço uma pintura na cidade não busco a ação artística como um fim – mas como uma intervenção cujo caráter temporário se dá de forma mais potente, transformando-se inclusive pela própria ação humana, do tempo e do clima”. Naturalmente, a relação dos transeuntes com a arte exposta possui outro processo de significação: “busco confrontar as pessoas com imagens, sem esperar delas uma fruição como se dá em uma galeria, por exemplo. Ao reproduzir um rosto retirado de um jornal, tento dar um novo significado a essa imagem – sem a repercussão de um fato jornalístico; mas que, pela cor e escala, carrega uma beleza monumental normalmente ignorada de outra forma”.
O alcance desses discursos e a profundidade com a qual eles são compreendidos são impossíveis de prever, visto que é no contato com o receptor que a arte de fato acontece. Éder tem consciência de que não pode estabelecer a forma como sua obra atinge quem se depara com ela. “É difícil pra quem produz arte ter noção do que ela vai causar no outro. Por mais que tente falar sobre valores e identidade, minhas ambições quanto aos trabalhos que desenvolvo estão sempre num plano subjetivo, no sentido de buscar algum tipo de reflexão, mesmo que simples ou passageira, sobre aquilo que retrato”, considera. Mesmo assim, quando perguntado sobre o que gostaria que sua arte dissesse a quem a vê, ele arrisca um desejo: “Se alguém pudesse se reconhecer como retratado, gostaria que essa pessoa, ao se deparar com os traços, formas e volumes, pensasse sobre a beleza de uma forma em geral – e sobre si mesmo, por um instante, como alguém que também carrega, debaixo dessa camada mais aparente, algo de belo em sua especificidade”, reflete o artista, consciente de ser ele mesmo parte desse poder de fazer enxergar que só a arte tem.