Não quero falar de Flaubert, nem de suas paixões, mas do meu envolvimento com o cinema, a literatura e a música, incendiado pelos 35 anos de convivência com as prateleiras e as pessoas que fizeram da Fox um dos ícones da nossa história pelas artes.
Devido às minhas constantes idas à Manaus, fui um dos primeiros a ter um vídeo cassete, num tempo em que nem locadoras ainda havia. Consegui uma fita pirata do The Wall do Pink Floyd na visão do Alan Parker. Por paixão e falta de opção assisti mais de 80 vezes. Fazia sessões no meu primeiro apartamento de solteiro, na casa dos meus vinte e poucos anos e convidava os amigos para se encantarem com aquela novidade de duas cabeças e controle remoto com fio.
Um ou dois anos depois inaugurava a Fox Vídeo, em maio de 1987. Agitado com a novidade, fui o cliente de número 30. Os filmes ficavam num depósito e os escolhíamos pelas fichas técnicas acartonadas, preparadas com cuidado e carinho pela Déborah numa paleolítica máquina de escrever Olivetti, encaixadas em expositores metálicos nas paredes da Benjamin Constant, separados por gênero: Drama, Ação, Comédia, Adulto, esse sutil eufemismo para títulos com trocadilhos infames como “Mad Jack: Além da Cópula do Tesão”.
Havia um ritual quase diário de ver filmes e, mais excitante, era escolhê-los com a ajuda da Déborah, do Marcos, do Javanês ou de outros clientes que sempre tínhamos o prazer de encontrar: Guilhermes, Albanos, Ronaldos, Chicos, Otávios, Marcos, Pedros, Luzias, Dedés e tantos anônimos que durantes anos, décadas, compartilhavam opiniões, experiências, emoções, sonhos e até Horas de Pesadelo em qualquer Sexta Feira 13.
Se era pra rir, Corre Que a Polícia Vem Aí. Pra chorar bastava entrar no Cinema Paradiso. Para obedecer, O Poderoso Chefão. Para voar, Asas da Liberdade. Pra correr, Carruagens de Fogo. Pra comer, Festa de Babette. Quer jogar xadrez, O Sétimo Selo. Vizinha fofoqueira? Janela Indiscreta. A vida é uma caixa de chocolates Forrest Gump.
E das fitas de vídeo vieram os Videos Disk Laser, depois os CDs, os DVDs e por último Blu Ray. Por tudo isso a Fox passou e testemunhou o tempo e a tecnologia avançar na condensação de bits em suportes cada vez mais poderosos. Só não podia acompanhar o streaming, o fim do suporte físico para o encantamento do cinema e da música.
Mas, corajosamente a Fox enfrentou os novos tempos com outra paixão, as letras. Em pouco tempo tornou-se a livraria preferida da cidade e muito mais que isso, um ponto de encontro com seu inefável Café que reunia à mesa a conversa entre pessoas no universo físico, numa rara demonstração de enfrentamento às salas virtuais com sua etiqueta feita de confrontos ou bajulações desmedidas.
O Café da Fox foi nosso canto parisiense ou portenho nestes Tristes Trópicos. Rodeados por Lévi-Strauss, Borges, o realismo fantástico de Gabo nos conduzia Entrelinhas para o espaço de Lispector. Vigiados sempre por Pierrot, o Gato da Fox. Nunca mais diria Alan Poe.
Há quarenta anos, quando ainda tinha sonhos de poeta, escrevi um texto para marcar o fim das Sete Quedas, cobertas pelo lago da usina de Itaipu:
Réquiem para Sete Quedas
Nesta noite há de pousar um tigre,
Olhos ferinos, dentes de carne recente.
Passará pela cidade
desafiando loucos e tolos.
E nada, nada acontecerá.
Exceto uma luz que se extinguirá
numa janela para sempre fechada.
Assim como Sete Quedas sobrevive sob o lago e nos abastece de energia até hoje, a Fox permanecerá em nossos Corações e Mentes enquanto houver razões para se emocionar.
Celso Eluan
31.01.23