Belém possui imponentes templos. Cheios de memórias e movimentação cultural, cumpriram (e continuam cumprindo) o fundamental papel de disseminar uma devoção especial e extremamente necessária: a devoção pela leitura e pela história. As bibliotecas da cidade, além de abrigar a história do mundo em milhares de páginas, também fixaram prateleiras nas vidas de quem passou, formou-se ou se transformou por elas.
Nem precisamos ir tão longe. Se você estiver pelo centro da capital paraense, pode entrar, pela Avenida Conselheiro Furtado ou pela Gentil Bittencourt para (re)encontrar a Biblioteca Pública Arthur Vianna, localizada dentro do Centur. A instituição que, hoje, integra a Fundação Cultural do Pará, foi fundada há quase um século e meio, como anexo do Arquivo Público do Estado e, há 37 anos, transferida para o prédio atual. Aos que nasceram em Belém (quando não recorríamos à internet e ao Google para as pesquisas escolares), a Arthur Vianna tem um apelo afetivo: não há como não lembrar o quanto era bom subir aquelas escadas, girar as catracas e encontrar o contraste entre o silêncio do ambiente e as múltiplas vozes do conhecimento ali reunidas. Se você foi estudante nessas três últimas décadas, certamente passou por lá. O acervo geral, hoje, conta com aproximadamente 800 mil exemplares, entre livros, periódicos, vinis e DVDs. É aberto ao público, das 8h às 19h, sem intervalo. O prédio abriga a biblioteca principal (com as áreas de consulta e empréstimos), o Infocentro (que disponibiliza computadores com acesso à internet), arquivo de jornais e revistas, seções de obras do Pará e de obras raras. Também mantém uma área lúdica, com brinquedoteca, fonoteca (acervo de vinis para serem ouvidos no local. Conta com poltronas, vitrolas e fones de ouvido), sala de audiovisual (com TVs e DVDs), biblioteca infantil e gibiteca.
“É no espaço lúdico que, todas as terças e quintas-feiras, recebemos visitas escolares e realizamos contação de histórias e teatro de fantoches. São momentos muito importantes para o estímulo à leitura entre as crianças. Na seção de obras raras, temos em torno de 100 mil exemplares. Quase a totalidade deles é advinda de doações. São livros que faziam parte dos acervos particulares de personalidades paraenses, como os escritores Idelfonso Guimarães e Haroldo Maranhão, por exemplo, e que vieram a ser doados pelas famílias deles após o falecimento”, conta Simone Rabelo, 47 anos, bibliotecária da Arthur Vianna. Parte desses títulos raros já está digitalizada e pode ser acessada no site da Fundação Cultural do Pará.
Mensalmente, essa seção recebe uma média de três mil acessos on-line, a partir de computadores do Brasil e de outros países. Mas não pense que o processo de digitalização esvaziou a biblioteca. Simone se orgulha em dizer que a circulação média de pessoas no espaço é de 700 por dia. “Recebemos gente que vem fazer pesquisa, emprestar livros ou, simplesmente, aproveitar o espaço e o silêncio para estudar. Na época do ENEM, isso aqui fica lotado todas as tardes. Em alguns dias, foi preciso colocar cadeiras extras para atender todo mundo. Trabalhar em uma biblioteca pública é incrível! Aqui, eu atendo professores, alunos, pesquisadores, donas de casa que adoram ler e até moradores de rua. É um público muito diverso. Certa vez, um de nossos funcionários chegou contando que viu um homem deitado na calçada, abraçado com um de nossos livros, todos os exemplares são identificados com etiqueta da instituição”, conta Simone.
Qualquer pessoa pode emprestar livros na Biblioteca Arthur Vianna, mediante a realização de um cadastro prévio, para o qual é necessário apresentar documentos de RG, CPF e comprovante de residência. Pessoas em situação de rua têm a oportunidade de se cadastrar, pois, geralmente estão vinculados a algum abrigo e utilizam o comprovante de endereço da entidade para ter como referência. Cada leitor pode emprestar até dois livros por 10 dias. Idosos, a partir de 60 anos, têm um tempo maior pra devolver: até 14 dias. Já os professores, podem levar até três livros por vez.
Com Portugal, veio o mundo para as prateleiras
Agora, sigamos na leitura até a Rua Senador Manoel Barata e vamos chegar um prédio histórico, no bairro da Campina. Propriedade privada de um clube social, no terceiro andar, abriga a biblioteca Fran Paxeco, considerada a terceira do Brasil em quantidade de obras raras. Segundo Nazaré Goes, bibliotecária responsável, o espaço foi criado em 1867, junto com a fundação da agremiação, com o objetivo de proporcionar ambiente para leitura e recreação aos imigrantes portugueses, no período da Borracha. Não por coincidência, o clube que a detém chama-se Grêmio Literário e Recreativo Português. “Naquela época, a biblioteca tinha o papel de manter os lusitanos que moravam em Belém informados sobre os acontecimentos da Europa. Eles vinham aqui para ler os jornais que chegavam de lá. Temos um acervo geral de livros. Porém, grande parte é sobre literatura portuguesa e francesa. Entre os franceses, contamos com edições originais – alguns em suas primeiras edições – e outras traduzidas para a nossa língua.
A biblioteca reúne aproximadamente 35 mil exemplares. São títulos que contam a história de Portugal, coleções sobre a Amazônia, além da obra de Camilo Castelo Branco quase completa. O livro mais antigo da biblioteca data de 1528, é a obra religiosa ‘Phila’, escrita em Latim”, destaca. Há 20 anos, Nazaré sobe e desce as escadarias de madeira do prédio da sede social do Grêmio. O som dos passos nos degraus parece contribuir para o clima de volta no tempo. Os livros e jornais são cuidadosamente guardados em armários de madeira com portas de vidro. Neles estão armazenados livros raríssimos alusivos a Camões, assim como a primeira edição ilustrada de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, lançada em 1723. Outro exemplo de raridade é a obra “Chronographia y Repertorio de los Tiempos”, publicada pelo astrônomo espanhol Francisco Vicente de Tornamira, em 1585. O exemplar da biblioteca do Grêmio Literário e Recreativo Português é o segundo a ser encontrado fora da Espanha. “Quando se pega um livro raro ou se lê um jornal do ano de 1850, é como se você voltasse para aquela época”, diz a bibliotecária.
A biblioteca Fran Paxeco guarda, ainda, jornais e revistas de Portugal e de outros países da Europa, do período entre 1840 e 1856. Periódicos paraense já extintos também fazem parte do acervo, como o “13 de maio”, o “Velho Brado do Amazonas”, o “Correio dos Pobres”, “O Publicador Paraense”, entre outros. O espaço é aberto ao público, de segunda a sexta, das 8h às 12h.
Colônia, Império e República no mesmo lugar, ao mesmo tempo
Para finalizar o nosso passeio literário, vamos voltar algumas páginas. Na verdade, muitas, até retornar ao ano de 1901. Lembra que falamos, lá no início, que a Biblioteca Pública Arthur Viana nasceu atrelada ao Arquivo Público do Pará? Então, é para lá que iremos agora. Órgão do governo do Estado, ligado à Secretaria de Cultura, tem como principais missões recolher documentos históricos produzidos pela administração estadual, conservá-los e disponibilizá-los à sociedade.
É considerado o quarto mais importante do país, reúne documentos dos períodos Colonial, imperial e Republicano. Entre eles, correspondências que contam sobre a colonização portuguesa na Amazônia, fornecem informações sobre os conflitos com os indígenas na época, além da introdução dos negros e a escravidão na região. Situado na travessa Campos Sales, nº 273, está no epicentro da movimentação do comércio de Belém. No entanto, é como se os seus portões abrissem verdadeiros portais para outra dimensão.
Do lado de dentro, o visitante é envolvido por uma sensação de paz e silêncio absolutos, que até se esquece de toda a confusão de sons que ficaram para fora. “O prédio é um oásis no meio do Comércio. Foi todo construído em estilo neoclássico. Tanto a área externa quanto a interna e os mobiliários remontam ao período da Belle Époque. Aqui, no final no século XIX, funcionava o Banco Comercial do Pará. Hoje, o Arquivo Público abriga mais de quatro mil documentos. Se organizados de forma linear, chegam a dois mil metros de história”, evidencia Leonardo Torii, 36 anos, historiador e diretor do Arquivo Público. O espaço é aberto de segunda a sexta, das 8h às 15h. Não é necessário agendamento.
Além de base para pesquisas e estudos acadêmicos, o Arquivo Público é acessado como fonte de provas para processos pessoais. “Somos procurados por gente que deseja pleitear dupla cidadania e vem em busca de documentos que possam comprovar o parentesco com antepassados portugueses ou espanhóis, por exemplo. Além disso, funcionários públicos que trabalharam para o Estado na década de 1980, em repartições que já foram extintas, também vêm para encontrar documentos que possam referendar o tempo de serviço para o processo de aposentadoria”, afirma o diretor.
Muitos dos arquivos são documentos administrativos, que passaram a ter valor histórico. Há registros de inquéritos policiais do século XIX e parte do XX, prontuários de hospitais, um verdadeiro quebra-cabeças que, ao se encaixar, revela imagens de como era a sociedade paraense ao longo do tempo. Com documentos do período colonial, o Arquivo Público do Pará tem importância reconhecida, também, por guardar registros de outros estados da federação.
Naquela época, integrávamos o Estado do Grão-Pará e Maranhão, uma unidade administrativa da coroa portuguesa, que englobava as regiões que, atualmente, correspondem aos estados do Pará, Amazonas, Maranhão, Amapá, Roraima e Piauí. “O Arquivo Público detém correspondências das autoridades estabelecidas aqui com a coroa portuguesa, cartas entre as lideranças da capital com as lideranças de São Luís e da capital com os municípios do interior. São documentos que revelam informações interessantes, como a importância dos rios, a forma como se deu a escravidão e a incorporação de hábitos indígenas pelos portugueses, como dormir em redes e comer farinha” afirma o diretor Leonardo Torii.