Tatuagem, na pele, na memória

Dos antigos egípcios às tribos do século XXI, já se vão milênios de histórias eternizadas por meio das tatuagens

15/12/2010 18:32 / Por: Camila Barbalho / Fotos: Luiza Cavalcante
Tatuagem, na pele, na memória

Uma dermopigmentação, um machucado colorido. Obra de arte viva e estampada no corpo, a tatuagem foi a maneira de modificar o corpo que – a despeito de toda a recriminação que sofreu ao longo dos anos – mais ganhou popularidade no mundo inteiro. E engana-se quem acredita que o apelo estético dos desenhos grafados na pele surgiu dia desses, com uma âncora no braço de um marinheiro marginalizado dos anos 50. A tatuagem atravessou milênios para perpetuar-se até os dias de hoje como forma legítima de expressão, seja meramente vaidosa ou transbordando significado.

A arqueologia sugere que os egípcios já se tatuavam entre 4000 e 2000 antes de Cristo, em rituais ligados ao mundo espiritual. A igreja da Idade Média proibiu os desenhos por considerar uma prática demoníaca e a classificou como vandalismo do próprio corpo. Em outros lugares, como na Inglaterra, a tatuagem era um identificador de presidiários – o que contribuiu para criar o estigma de delinquência em torno dos adeptos. Mesmo a chegada do gênero ao Brasil, através do porto de Santos na década de 60, não ajudou muito na propagação da imagem de tatuados: a primeira loja, trazida por um dinamarquês, foi instalada bem na zona da cidade, próxima a toda sorte de bêbados, arruaceiros, viciados e prostitutas. Só com a TV e a divulgação de artistas e pessoas tidas como modernas exibindo suas tatoos é que os narizes desentortaram. Mas nem tanto.

 

Rodrigo Braga gravou no corpo a devoção por São Jorge

 

A despeito de toda essa carga acumulada de preconceito e mesmo do caráter puramente estético que motiva muita gente a estampar algo no próprio corpo, há quem utilize a tatuagem como vínculo a uma grande história pessoal, seja ela qual for. Gente que planeja cuidadosamente um desenho cujo sentido não vai se perder por aí – apesar de a irreversibilidade não ser mais um problema – para, quando marcado na pele, marcar também a própria trajetória.

Foi esse o motivo que levou o ator, músico e estudante de psicologia Rodrigo Braga a fazer a única tatuagem que tem no corpo. Criado em uma família espírita, alguns elementos do catolicismo chamavam sua atenção, mesmo não sendo este um grande esteio da sua educação. São Jorge, em especial, fez com que Rodrigo se sentisse representado. "Comecei a me identificar com ele pelo lado lúdico, artístico mesmo. A representatividade dele na cultura atual, por ele ser um desbravador, guerreiro, manifestado artisticamente de forma tão poética, chamou minha atenção", conta. "Ele chegou até mim por meio da imagem dele, e as coisas começaram a se manifestar. Eu passei a associar São Jorge a quase tudo na minha vida."

Por ter um laço forte com a cultura negra – por meio da música, da capoeira e do sincretismo religioso – o ator passou a perceber a identificação do santo nesse ambiente. Foi então que surgiu a ideia de mesclar na tatuagem esses elementos. "Optei por não fazer São Jorge clássico. Peguei a atmosfera dele e inseri o Ogum, que é correlacionado com o santo no sincretismo", explica. O motivo definitivo para tatuar a imagem veio quando Rodrigo começou a trabalhar com projetos sociais. "Passei a me sentir ligado a São Jorge como ícone de bravura, e pela fidelidade dele aos seus ideais. O fato de ele estar tatuado no meu corpo representa um sinal de alerta, um compromisso para a eternidade com essa fidelidade. Todos temos dragões para combater", acredita.

A homenagem à Virgem de Nazaré foi feita após Adriana Ferreira alcançar uma graça

 

Também foi a fé que inspirou a tatuagem da advogada Adriana Ferreira. Devota fervorosa de Nossa Senhora de Nazaré, ela decidiu colocar na pele o mesmo lema encontrado na frente da Basílica: Deiparae Virgini a Nazareth. A tatuagem é mais que uma homenagem: é fruto de uma promessa feita à padroeira paraense quando Adriana, ainda em início de carreira, conseguiu passar no concorrido teste da Ordem dos Advogados do Brasil.

Lúcia Chalí, psicóloga, também se tatuou para lembrar uma crença, embora de outro tipo. Envolvida com os estudos da filosofia de nomes como Foucault e Deleuze, Lúcia encontrou na temática da subjetivação e da chamada "estética da existência" algo digno de ser perpetuado – uma teoria conhecida como "A Dobra": a vida como uma existência coletiva, onde o que é interiorizado também está do lado de fora, e vice-versa. "É uma perspectiva de vida. Foucault dizia que viver é uma obra de arte em constante construção, não como objeto, mas no cuidado com o outro e nas coisas externas que você escolhe tomar também como suas", define. Decidida a marcar essa teoria em si, Lúcia passou a procurar tatuadores que comprassem a ideia e procurassem uma maneira de tornar imagético algo tão abstrato.

A psicóloga Lúcia Chali buscou uma forma de retratar as suas "várias personalidades"

 

"Foi difícil encontrar alguém pra desenhar a tatoo. Eles diziam pra mim ‘eu faço tatuagem de coisas que existem’", diverte-se. "Acabei conseguindo chegar a um desenho discreto e que significa o que eu gostaria. Mas pra maioria das pessoas eu nem explico". Quando questionada se "a Dobra" faria sentido para sempre na sua vida, Lúcia arremata: "Eu não tenho só uma personalidade, posso mudar de repente. Mas é uma coisa que eu quero que fique indelével. Por mais que passe, ficará eternizado".

Um dos profissionais mais requisitados do segmento, Paulo Tatoo viu um homem todo tatuado quando tinha 9 anos de idade e decidiu que um dia seria assim. Com 17 anos começou a comprar seu próprio material e foi o pioneiro no norte do país. Hoje, com 30 anos de carreira, Paulo resume seu trabalho: "O importante é saber desenhar e entender de pele", acredita o tatuador. Segundo ele, é a tatuagem que escolhe o tatuado. "Eu não tatuo quem não sabe o que quer. Quando a pessoa vem insegura, provavelmente vai cobrir o desenho depois. Agora, quando vem decidida, pode mostrar qualquer outra possibilidade que ela vai dizer não." Ainda nos dias de hoje, Paulo vê preconceito com quem opta por essa arte. "As pessoas ficam olhando, rindo... Mas isso tem que acabar. Tatuagem não define caráter", sentencia.

Paulo Tatto é uma das grandes referências paraenses quando o assunto é tatuagem

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