Quanto mais instigante é uma história, maior é o risco de insatisfação dos seguidores com o desenrolar e o desfecho dela. A afirmativa pode até parecer estranha, mas basta relembrar alguns exemplos do cinema, da televisão e da literatura para concordar nem que seja só um pouco. Será que todos os telespectadores da novela “Avenida Brasil” gostaram da solução do assassinato de Max? Ou que o final de “Lost” respondeu a todas as dúvidas de quem acompanhou religiosamente o seriado durante seis temporadas? E o triângulo amoroso da saga “Crepúsculo”? Terminou do jeito que todos os fãs queriam? É muito provável que as respostas a essas perguntas não sejam unânimes e que muita gente tenha tido vontade de reescrever a trama do jeito que preferia que ela fosse conduzida.
Se você já sentiu alguma vez esse desejo de transformar a história que viu ou leu, o universo das fanfictions não lhe é distante. Em geral, essa vontade é motivada pelo desenvolvimento de fortes laços afetivos com a obra original, que leva os fãs a não se contentarem com o mero papel de consumidores passivos. Eles passam a querer interferir na narrativa, em maior ou menor grau. Decidem dar novos caminhos à trama, transferir a ação para outros locais ou criar personagens que não existiam no original. Sempre mantendo uma fidelidade respeitosa ao universo onde buscam inspiração. “A fanfiction é uma história escrita por um fã, envolvendo os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original, sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro envolvidos nessa prática”, evidencia Maria Lúcia Bandeira Vargas, que escreveu em 2005 o livro “O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico”.
As fanfictions ganharam corpo e se expandiram graças à internet, mas não representam uma ideia exatamente inovadora. Segundo Maria Lúcia Bandeira Vargas, a origem do fenômeno data do final da década de 1960, quando surgiram os primeiros fanzines, justaposição das palavras em inglês fan (fã) e magazine (revista). Essas publicações independentes nasceram com o propósito de aproximar os aficionados por algum universo ficcional, seja da TV, do cinema ou dos quadrinhos. Além disso, elas colocaram em circulação as histórias criadas pelos fãs e que acabariam desconhecidas. “Tem-se notícia do surgimento das fanfictions a partir do momento em que houve registro de um público leitor interessado nelas. Essas histórias, caso conquistassem destino outro que não o enclausuramento nas gavetas do autor, circulavam entre um público muito restrito, naturalmente fãs do seriado em questão”, explica.
Com a internet, a circulação aumentou exponencialmente, assim como o volume da produção. Em websites como o fanfiction.net, por exemplo, o número de ficções publicadas ultrapassa a casa dos milhões. Só a saga Harry Potter tinha, no final de janeiro, mais de 600 mil textos disponíveis no site. É tanta gente produzindo tantas histórias que o intercâmbio entre fãs se torna inevitável e rende causos pessoais de amizades criadas, sucessos improváveis e de carreiras literárias surgidas a partir das fanfictions.
Na carteira de identidade, ela se chama Lara Zenga. Mas no universo das fanfictions na internet, é mais conhecida como One Carter. O pseudônimo homenageia Chris Carter, criador do seriado sobre o qual Lara escreveu mais de uma centena de textos: Arquivo X. Mas a ânsia de querer reescrever histórias publicadas nasceu bem antes da famosa série dos anos 90. Em 1983, começou a escrever novelas depois que não gostou do final da primeira versão de “Guerra dos sexos”, as Rede Globo. Tinha apenas 12 anos. “Achei que se alguém podia escrever uma novela, eu poderia fazer uma também, e com o final que eu quisesse. Quem passasse por mim na escola sempre me via com um caderno universitário na hora do intervalo e pensaria que eu era uma menina estudiosa. Na verdade o caderno continha os capítulos da minha própria novela que eu ia escrevendo à mão, porque os colegas queriam ler um capítulo por dia”, relembra.
Mas foi com “Arquivo X” que Lara ganhou popularidade como autora de fanfictions. Começou a escrevê-las depois que foi instigada por uma colega de faculdade que também era fã do seriado. Fez a primeira, a segunda, a terceira... Hoje são 180, estruturadas em seis temporadas distintas. “Fiquei aborrecida com os rumos da série. Aí comecei a mudar o direcionamento das fanfictions. Passei a introduzir personagens próprios, desviei o enredo como eu queria ver na TV e alguns leitores chegaram ao ponto de me dizer que tinham duas séries pra escolher: a da TV e a virtual”, conta Lara. No auge do sucesso de suas fanfictions, Lara respondia a mais de 200 e-mails por semana, isso sem contar os leitores que não tinham acesso a internet. Para eles, ela imprimia os textos e os enviava pelo correio. Como retribuição, recebia muitas cartas de agradecimento que fechavam o ciclo de uma atividade cujo único lucro é a satisfação. “Nós nos mantemos apenas pela paixão por escrever, que muitas vezes começa com ‘tô detestando o rumo da minha saga/série favorita, vou começar a escrever como eu queria que fosse e dividir isso com quem também queria ver assim’”, explica.
As histórias sobrenaturais investigadas pelos agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully também foram inspiradoras para a jornalista Alessandra Malcher Godinho. “Arquivo X” foi um seriado que marcou a adolescência dela e em cujo universo ela mergulhou profundamente. Apesar de ser muito nova, Alessandra participava de encontros de fãs realizados em Belém. “Meus pais me deixavam ir raramente por causa da idade. Nesses eventos eram transmitidos episódios inéditos no Brasil, realizavam sorteios de fitas cassete com episódios gravados (ainda não existia DVD, muito menos o box com temporadas) e também escolhiam a melhor fanfiction de cada gênero”, relembra.
Como a tensão sexual entre os protagonistas era um dos carros-chefes do seriado, era esse sentimento que norteava os gêneros das fanfictions de “Arquivo X”. Shippers eram os textos que levavam a história para a concretização do romance entre Mulder e Scully. Half-shippers, os que ficavam em cima do muro nesse aspecto. E os noromos (derivado de “no romance”), os que mantinham os personagens sem envolvimento amoroso. Quando começou a escrever as próprias fanfictions, Alessandra optou pelo gênero shipper e construiu uma rotina organizada de produção. “Eu ia pro colégio, voltava, ligava a TV pra esperar as reprises das 18 horas e o episódio inédito das 21. No intervalo entre um e outro, lia e escrevia as fanfictions”, conta. Uma delas foi premiada no fórum de fãs de “Arquivo X” no site Mundo Fox. “Escrevi um texto que misturava ‘Arquivo X’ e ‘Twilight Zone’ (outro seriado cultuado) e ganhei um prêmio de melhor fanfiction shipper do mês. Disponibilizaram até um banner do prêmio para eu colocar no meu blog. Era um prêmio para poucos”, orgulha-se.
As fanfictions também podem ser o prefácio de uma carreira literária. Assim como Alessandra, Roberta Spindler foi uma adolescente aficionada por “Arquivo X” e que não se conformava com as histórias que acompanhava na TV. “Eu queria falar sobre Mulder e Scully da minha maneira, abordando temas que não via na série. Antes de começar, já tinha o costume de ler outros textos semelhantes e acredito que eles contribuíram pra que eu conseguisse a coragem de escrever”, conta. Os textos eram publicados na internet e sempre tinham retorno elogioso de leitores. Depois de alguns anos nas fanfictions, Roberta se aventurou a criar o próprio universo narrativo e ficcional. Ao lado de Oriana Comesanha, escreveu o livro “Contos de Meigan”, publicado em 2011 pela editora Dracena e bastante comentado em blogs de literatura. Para Roberta, a prática nas fanfictions foi fundamental. “As fanfictions com certeza me impulsionaram a escrever. Foi com elas que adquiri o hábito e também, graças a elas, desenvolvi minha escrita na época da adolescência. Foi uma fase bem importante. Acredito que ela me tornou uma escritora melhor e me ajudou na criação de minhas próprias histórias depois”, opina.
Mas não pense que as fanfictions se resumem a textos para ser escritos e lidos. A produção audiovisual também abre amplas possibilidades para a criatividade dos fãs inquietos e criativos. Um bom exemplo disso foi um vídeo produzido em Belém que fez sucesso na internet em 2006 e ainda arranca risadas de quem nunca o viu: “O Aranha no Pará”. Em 4 minutos e meio, um capítulo pouco imaginável das aventuras do Homem Aranha: uma ida do super-herói a Belém por causa de uma viagem a trabalho de seu alter-ego, o fotógrafo Peter Parker. Em vez de cumprir as pautas dadas pelo chefe, Parker (travestido de Homem Aranha) faz uma peregrinação pelos bares e pela noite de Belém, encontrando até um cover de Elvis Presley com quem faz uma luta coreografada.
A ideia foi de um grupo de estudantes de comunicação social que tinham um trabalho acadêmico para fazer. A missão era criar o trailer de um filme imaginário, apenas com uma câmera de mão e duas semanas de prazo. A dois dias da entrega, o grupo não tinha nem o roteiro e resolveu usar a criatividade e a irreverência. “Eu tinha uma roupa de Homem Aranha no armário, coloquei um dos meus colegas de grupo pra vestir e decidimos sair na rua e improvisar”, relembra o produtor Laércio Cubas. O resultado foi hilário e acabou sendo premiado em um festival de vídeos na Universidade da Amazônia, onde o grupo estudava. Isso sem contar com o sucesso na internet. O vídeo foi muito compartilhado por e-mail numa época em que o YouTube ainda era novidade. “O filme, de fato, teve uma repercussão bem maior do que esperávamos, já que ele foi mesmo filmado de forma tosca, mas de certa forma ele foi um precursor dos vídeos virais e memes tão comuns hoje em dia. Então vira e mexe alguém compartilha o vídeo e uma nova geração toma conhecimento dele”, opina Laércio, que interpretou o chefe de Peter Parker no filme.
Esses são apenas exemplos de produções independentes, mas dá pra encontrar o espírito das fanfictions em obras mundialmente famosas. O circuito comercial de cinema recebeu em 2013 uma adaptação sangrenta de uma clássica história infantil, “João e Maria caçadores de bruxas”, filme com um título autoexplicativo. O escritor Seth-Grahame Smith foi além e acrescentou mortos-vivos a um clássico da literatura, “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen. Nasceu assim “Orgulho, preconceito e zumbis”, que acabou virando best-seller e ícone de um gênero chamado mash-up classic. Os formatos são variados, as transformações também, mas esses produtos da indústria cultural e as fanfictions são unidos pelo espírito. “Os leitores procuram extensões, mais conteúdo ou até mesmo um mundo alternativo para aqueles personagens que os agradam. Não somente em sagas literárias, mas em qualquer tipo de entretenimento”, afirma Roberta Spindler. “Acho que as fanfictions nascem de um desejo interno de insatisfação com o rumo que estão dando aos personagens. Esse universo é tão vasto quanto a imaginação dos fãs”, completa Alessandra Godinho.