Complexo, intenso, inventivo. Salvador Dalí (1904-1989) era demais para quaisquer adjetivos que o ladeassem. Uma das mentes mais inquietas do século XX, o artista plástico tornou-se mundialmente conhecido e influente devido tanto ao seu célebre trabalho surrealista quanto à sua personalidade extravagante – o que incluía uma grande paixão por roupas orientais e por objetos excêntricos. Seu indefectível bigode foi inspirado no do pintor espanhol Diego Velázquez (1599-1660).
Além de pintor, Dalí foi escultor, desenhista, escritor, ilustrador, pintor, fotógrafo, designer de joias e cineasta. No início dos anos 1930, Dalí deixou para trás as influências impressionistas, cubistas e futuristas e se integrou definitivamente ao surrealismo. Ele encontrou seu próprio estilo, sua linguagem particular e sua forma de expressão – uma mistura de vanguarda e tradição. Sua obra mais famosa, o quadro “A Persistência da Memória” (1931), com seus relógios derretidos em uma paisagem estranha, é constante e imperecível fonte de referência e reconhecimento no que diz respeito à arte, em seu sentido mais amplo. O surrealismo, condutor principal do seu vasto trabalho, apresentou-se em símbolos recorrentes nas pinturas: além dos já citados relógios, houve elefantes com patas compridas, gafanhotos, formigas e ovos, por exemplo. Seu método de criação, batizado de “pananoico-crítico”, consistia na recriação dos processos ativos da mente que suscitam imagens de objetos não existentes na realidade.
Mergulhar no universo surrealista, onírico e excêntrico do catalão parece ser tarefa – para além de pretensiosa – impossível. O imaginativo mundo por ele criado é propriedade restrita, particular, do qual só é permitido observar o belo exterior. Mesmo assim, é possível vislumbrar o processo de contrução desse universo visitando três cidades próximas a Barcelona - Figueres, Cadaqués e Púbol -, intrinsecamente vinculadas ao pintor. Em cada um desses lugares, uma parada obrigatória: em Figueres, está o Teatro-Museu, que abriga o maior conjunto de obras do artista e um edifício anexo, com uma exposição de joias criadas por ele. Em Cadaqués, um charmoso balneário na Costa Brava, encontra-se a casa onde morou com a mulher, Gala. Já em Púbol, pode-se visitar o castelo que Dalí deu de presente à Gala e que também serviu de residência para o artista. A Revista Leal Moreira leva você a fazer esse passeio.
Figueres – cidade onde ele nasceu em 1904, da união de um notário e de uma dona de casa – é o lugar com o qual o artista possuía o maior (e inevitável) vínculo emocional. Era para onde ele sempre voltava. Foi o que aconteceu quando Dalí foi expulso da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, em Madri, onde morou na residência de estudantes e acabou conhecendo outros jovens que também se tornariam personalidades artísticas, como o diretor de cinema Luis Buñuel e o escritor Federico García Lorca. Já mostrando seu espírito revolucionário, Dalí foi expulso ao liderar um protesto contra escolha do novo diretor do departamento de pintura. O artista voltou a morar em Figueres até retornar à academia em 1924. O período foi frutífero: ele realizou sua primeira exposição individual em Barcelona, numa época quando seu trabalho ainda era voltado para a tradição pictórica italiana. Foi a Paris dois anos depois, conheceu Picasso e o Louvre, voltou a Madri e foi expulso novamente da Escola de belas Artes. Foi em Figueres, novamente, que Salvador encontrou seu refúgio e raiz para dedicar-se à pintura.
E foi em Figueres que Dalí ergueu o seu Teatro-Museu – que pode ser considerado o mais importante dos três espaços, com um amplo leque de obras que descrevem sua trajetória artística, desde as primeiras experiências (impressionismo, futurismo, cubismo) até as últimas criações da sua vida, passando pelo estilo que lhe proporcionou fama e reconhecimento artístico, o surrealismo. O museu em si pode ser considerado uma obra de arte. Foi construído a partir de um minucioso e audacioso projeto do próprio Dalí sobre as ruínas do antigo teatro da cidade e incendiado durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Entre o início de sua elaboração e a inauguração em 1974, foram 13 anos de dedicação.
O edifício, onde também se encontra a cripta do artista, tem uma estrutura labiríntica e a exposição das obras não obedece a uma ordem cronológica. Aliás, muitas pinturas aparecem sem título e data, como era desejo do próprio Dalí. Entre as principais obras expostas estão “O Espectro do Sex-Appeal” (1932), “Galarina” (1944), “Leda Atômica” (1949) e “Galatéia das Esferas” (1952).
O artista, que cuidou dos mínimos detalhes do museu, também realizou obras exclusivamente para a instituição. Um exemplo é a famosa sala Mae West, na qual Dalí reproduz o rosto da atriz norte-americana utilizando um sofá como boca, uma lareira como nariz, dois quadros como olhos e uma cortina como cabelo. O visitante tem de subir uma escada, no fundo da sala e, através de uma lente, pode visualizar a sala-rosto. Outra obra que está no museu e merece atenção especial é o Cadillac Chuvoso, que fica na área onde antes era a plateia do teatro. Ela foi apresentada em 1938, na Exposição Internacional do Surrealismo, organizada em Paris por André Breton e Paul Éluard. Em tempo: Paul era ex-marido de Gala, com quem Dalí havia se casado apenas quatro anos antes, apesar de ter conhecido o grande amor de sua vida em 1929, quando ela ainda era casada com o poeta francês.
Em um edifício anexo ao Teatro-Museu, apresenta-se a exposição permanente com as 37 joias da coleção Owen Cheatham. Utilizando ouro e pedras preciosas, entre outros materiais, o artista criou peças que provocam estranheza e fascinação, representando plantas, animais, objetos, símbolos religiosos e mitológicos e partes do corpo humano.
Já a casa do povoado de Portlligat, em Cadaqués, mostra o gosto do artista por objetos extravagantes e revela aspectos de sua vida pessoal. Já na entrada, há um urso polar empalhado que servia para pendurar casacos e chapéus, além de um sofá-boca. A residência é o resultado da junção de várias casas de pescadores, compradas a partir de 1930, o que explica a estrutura labiríntica. Há os espaços íntimos do casal Gala e Dalí (que dormiam em camas separadas), a biblioteca, o estúdio e as áreas externas – como o jardim, com vasos em forma de xícaras gigantes, e a piscina, com bonecos Michelin e uma cabine telefônica.
As janelas que dão para a baía de Portlligat parecem verdadeiras pinturas. A luz e a beleza do lugar onde Dalí costumava veranear com a família foram grandes fontes de inspiração para o artista. Sobre o local, o artista declarou: “Portlligat é o lugar das realizações. É o lugar perfeito para o meu trabalho. Tudo conspira para que seja assim. O tempo passa lentamente e cada hora tem a sua dimensão exata. Há uma tranquilidade geológica: é um caso planetário único”.
Recentemente, um novo espaço foi incorporado à visita à casa de Dalí: a Torre de les Olles, uma construção circular que era usada pelo artista como estúdio adicional, principalmente para criar esculturas e realizar performances. No espaço, está o piano que o catalão usou em algumas ações artísticas e há projeções de reportagens dos anos 1960 e 1970 sobre Dalí e a residência de Portlligat.
A última parada do passeio pelo mundo de Dalí é o Castelo de Púbol, construção do século XIV, que Dalí comprou e decorou para Gala em 1969. Gala utilizava o local como refúgio e a presença da mulher era tão evidente lá que, quando Gala faleceu em Cadaqués no ano de 1982, o artista entrou em depressão e se mudou para o castelo – de onde só saiu após um incêndio no local. Depois de lá, Dalí voltou para Figueres e ficou na Torre Galatea até a sua morte, em 1989, devido a uma parada cardíaca.
A decoração do Castelo de Púbol inclui pinturas nas paredes, antiguidades e peças barrocas. Destaque para a beleza da antiga cozinha, transformada em quarto, e o Salão do Piano. É lá também onde se encontra a cripta de Gala.
O espaço recebe exposições temporais: atualmente, há uma mostra com 42 fotografias dos estúdios utilizados por Dalí para criar suas obras, em cidades como Figueres, Paris e Nova York, além de livros e revistas de época. O castelo também presta uma homenagem ao bicentenário do compositor alemão Richard Wagner – que inspirou a decoração de algumas partes do local – com fragmentos de um texto de Dalí sobre o balé “Venusberg”.
Para visitar os quatro espaços, o visitante necessita um mínimo de dois dias. De Barcelona a Figueres são 136 km (aproximadamente uma hora e meia de trem). De Figueres a Cadaqués são 40 km, a mesma distância da cidade para o Castelo de Púbol (há ônibus para os dois lugares).