Os nerds sempre estiveram entre nós. Acuados pela sociedade no passado, conviveram por um bom tempo com a incompreensão e agora lidam com a surpresa de ver seu estilo de vida como algo que vai bem além do estereótipo de CDF. De alguns poucos anos para cá, vivemos uma era em que a cultura nerd superou o sinônimo de esquisitice e subiu vários andares no elevador social do status, fazendo até quem torcia o nariz para os mais antenados ter vontade de se inserir no processo não apenas como espectador, mas também como personagem.
Alguns conservadores podem dizer que é tudo culpa da tecnologia, e eles não estarão errados. Afinal de contas, o processo de popularização em questão deve muito à importância que a tecnologia conquistou no cotidiano de boa parte da sociedade. A luta contra a exclusão digital abriu um espaço de interação entre cérebros e máquinas como nunca se viu antes. Hoje, é muito mais fácil - e barato - adquirir informação do que antigamente, o que torna o conceito de pessoa “cerebral demais” algo bem menos espesso.
Essa é a opinião do crítico de cinema Marco Moreira, 46 anos, que passou boa parte da juventude cultivando coleções de vinis e filmes, e hoje não fica sem acompanhar redes sociais e blogs selecionados. “Como a informação era disponibilizada de um jeito diferente, quem tinha acesso a ela era visto como intelectual ‘demais’ e ocasionalmente isso gerava rejeição. Hoje em dia é totalmente diferente, é cult ser uma pessoa bem informada, tem um certo status nisso”, diz ele.
A maior prova disso é que atualmente a cultura nerd entrou no rol das datas comemorativas. Em 25 de maio, comemora-se o Dia do Orgulho Nerd, em uma referência a um dos mais exaltados ícones do cinema: a data de estreia do filme “Uma Nova Esperança”, de George Lucas, que deu início à saga Guerra nas Estrelas – uma referência para todo bom nerd.
Incompreensão histórica
O estereótipo do nerd com muito conhecimento sobre assuntos complexos (como eletrônica outramas de ficção científica) e poucas habilidades sociais foi concebido nos Estados Unidos na década de 1930. Pouco depois do surgimento, o termo logo virou sinônimo de perdedor e taxou inúmeras vítimas de bullying ao longo do século XX. E as coisas ficaram ainda piores com uma certa “ajuda” da indústria cultural. Afinal, quem nunca viu qualquer filme em que alunos menos populares sofriam com a perseguição dos atletas robustos do colégio ou com os foras que recebiam das garotas bonitas?
O panorama começou a mudar no fim dos anos 1980, com a popularização dos produtos eletrônicos no Japão, ao mesmo tempo em que aparecia Bill Gates, o nerd que fundou a Microsoft – empresa que fez com que até pessoas sem conhecimento em programação pudessem usar um computador. A partir daí, a tecnologia ficou mais descomplicada e acessível. Com o salto dos anos 90 e a popularização da internet, passar horas absorvendo informação deixou de ser uma atividade exclusiva de pessoas “muito intelectuais”.
Outrora incompreendidos pela sociedade, hoje eles estão em todo lugar. A série americana “The Big Bang Theory” junta uma bela garçonete aspirante ao showbiz a um cômico grupo de nerds em um programa que tem mais de 70 mil telespectadores só no Brasil. O reality show “As Gostosas e os Nerds”, que reúne na mesma casa rapazes fãs de cálculo e modelos com corpos perfeitos e QIs baixos, no estilo Big Brother, também é um bom exemplo.
O maior modelo de homem de negócios hoje em dia é o bilionário criador do Facebook (maior rede social do mundo com mais de 660 milhões de usuários), Mark Zuckerberg, eleito homem do ano de 2010 pela revista “Time” e que teve a história contada no blockbuster “A Rede Social”. O filme é também um dos responsáveis pelo crescimento da rede social em terras brasileiras. Seria pela junção do cinema com o hábito recente de estar sempre ligado nas nossas identidades virtuais?
Ainda de acordo com Marco Antônio, “o cinema, em vários níveis, foi um dos grandes elementos transformadores do século passado e isso vai continuar neste novo século. O poder de inclusão da sétima arte é sem fronteiras e a cultura nerd não está fora desse universo”, diz. O designer de 23 anos Gustavo Nogueira, cujo trabalho é focado em experiências e conteúdo para mídias digitais, diz que as mídias sociais abrem portas para que as pessoas tenham acesso a contextos, pessoas e informações diferentes da realidade vivida por elas fora da internet.
“Em uma ou duas gerações antes da que eu nasci, as pessoas consumiam os mesmos produtos, liam os mesmos jornais e revistas, assistiam aos mesmos programas na televisão e achavam que o mundo era isso: ser igual. Hoje, por meio das mídias digitais, temos acesso a um mundo de referências diversas e o diferente passou a ser normal. Hoje, está mais relacionado a buscar sempre o novo, estar atualizado, e manter a mente jovem”, diz.
Fanatismo online
Até pouco tempo atrás, havia apenas dois segmentos bem fechados: os nerds propriamente ditos e os geeks, que se diferenciavam pelo interesse em softwares. Hoje, os termos aumentaram em gênero, número e grau e mais – eles se misturam. “Antes, ou o cara entendia tudo de computador ou ele jogava RPG ou vivia lendo diversas revistas em quadrinhos. Hoje, pode ser tudo isso e muito mais”, opina Gustavo.
O radialista e empresário Janjo Proença, 54 anos, discorda da diferenciação entre nerds e geeks. “Pra mim, ser nerd é muito mais que gostar de tecnologia. É usá-la para viver mais intensamente, mais ‘globalizadamente’. É se sentir no mundo, em qualquer capital, em qualquer país, sem sair da frente da sua tela”, argumenta ele, que há décadas acompanha a evolução da tecnologia.
“Eu tinha uma máquina elétrica IBM na minha sala e também um eletrizante aparelho de Fax. Dali eu fazia tudo. Depois, comprei meu primeiro computador com 16 mg de RAM, que trazia lugar para colocar disquetes. Era um espetáculo. Conexão com internet era complicado. Discávamos umas 15 vezes até conectar. Hoje podemos ver TV, assistir shows pelo Youtube ao vivo. As pessoas com mais idade estão descobrindo o Facebook e contactando amigos de escola, promovendo reuniões e mandando e-mails uns para os outros. Uma nova realidade, sem dúvida”, conta.
O estudante de direito André Leão, 23 anos, se considera um “nerd musical”, participa de diversos fóruns online e diz que a internet tem o poder de transformar interessados em aficionados. “Depende do interesse. As pessoas podem se tornar grandes conhecedoras de música, cinéfilos ou bibliófilos. Assíduos de cultura em geral. Para fazer parte desse mundo só é necessário ter uma boa conexão, as fontes certas e as perguntas certas. Qualquer um pode ser qualquer tipo de nerd, indo muito além do exímio conhecedor dos componentes de um computador”, aponta.
O jornalista especializado em games Arthur Napoleão, 25 anos, acrescenta que a evolução do mercado de jogos eletrônicos também tem grande importância na disseminação da cultura nerd. “O nível de imersão e acessibilidade dos videogames hoje chegou a níveis nunca antes vistos. Captura de movimentos, alta definição, 3D, atores famosos atuando de verdade nos games e histórias cada vez mais complexas tornaram os videogames algo atraente para todas as idades. Videogames não são mais meros instrumentos de entretenimento e socialização. Agora são também portas de entrada para outras mídias”, comenta.
Recentemente, a PlayStation Network (PSN), que conecta os jogadores do console mais avançado da Sony via internet para que possam jogar online e realizar compras, foi atacada e ficou fora do ar por quase um mês. A repercussão nos Estados Unidos foi enorme, com pessoas tratando o problema como se fosse tão sério quanto a falta de energia elétrica.
Para Arthur, o fato mostra uma importância que os games não tinham antigamente na vida das pessoas. “Diria que a tendência é que isso fique cada vez mais forte. Esta geração de videogames foi extremamente dependente da internet, e a próxima provavelmente será ainda mais. No Brasil, ainda reunimos muito os amigos na sala para jogar, mas isso deve mudar em algum tempo.”
Danilo Passos, um dos administradores do blog paraense de cultura pop 100Grana, afirma: tudo leva a crer que a moda não vá passar tão cedo. “Grandes pessoas da mídia dessa nova década são consideradas nerds, incluindo bilionários (como o próprio Mark Zuckerberg, que é um ótimo exemplo para mostrar que essa não é uma época passageira). Achamos que no futuro muita gente vai querer ‘virar’ nerd”, opina.
O blogueiro ainda conta que ao longo dos últimos anos o interesse no conteúdo do blog cresceu. “Sem dúvida tivemos um aumento nos acessos, consequência desse boom da cultura nerd. Existem pessoas que nem sonhavam em ter o hábito de jogar videogame há cinco anos e hoje são viciadas em jogos pra família no Wii ou em smartphones e mídias sociais. A popularização das adaptações de HQs para o cinema também ajudou. Conquistar o público e mantê-lo interessado é um trabalho constante, assim como a disseminação da cultura nerd”, pontua.