Há um milhão e meio de anos, o cérebro de nossos antepassados começou a sofrer um crescimento rápido e espantoso, que intriga os cientistas até hoje. O desenvolvimento possibilitou o aumento de neurônios e levou os humanos à soberania cognitiva no planeta. A chave da evolução, que permaneceu um mistério por séculos de pesquisas no campo da biologia, ganhou uma contribuição de uma teoria desenvolvida por duas pesquisadoras brasileiras.
A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Suzana Herculano-Houzel, e sua aluna de iniciação científica, Karina Fonseca-Azevedo, desenvolveram um estudo que indica que os humanos só conseguiram evoluir até o que somos hoje graças à invenção da cozinha. Segundo a teoria, o início do crescimento do cérebro humano em acentuada curva ascendente (veja gráfico) coincide com o período em que os antepassados do Homo sapiens começaram a dominar as técnicas do uso do fogo para o cozimento de alimentos.
A quantidade de energia que o cérebro consome é equivalente ao número de neurônios. A proporção se repete em outros animais como roedores e primatas. Por isso, segundo a pesquisa, para ter um cérebro maior, os humanos precisariam de mais calorias, o que segundo a teoria só foi possível com o advento da cozinha. “A gente não deveria estar aqui, nós seriamos matematicamente impossíveis, metabolicamente inviáveis se alguma coisa não tivesse mudado na maneira como a gente consegue calorias”, diz Suzana Herculano-Houzel.
A pesquisa foi publicada na PNAS (Proceedings of National Academy of the United States of America),revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, uma das mais prestigiosas da área científica no mundo, em 2012. As pesquisadoras desenvolveram a teoria utilizando conhecimento das áreas de nutrição, biologia, neurociência, modelos matemáticos e concluíram que a evolução do cérebro humano não se deu por acaso. As evidências são fósseis encontrados na África, datados de 1 milhão e meio de anos. O chão queimado, restos de comida e sinais de grupos organizados apontam que o homo erectus foi o primeiro a usar o fogo para ajudar a superar um difícil desafio enfrentado por nossos antepassados: a ingestão de carne crua, que tornava o processo de alimentação mais lento e menos eficiente na absorção de calorias.
“Conseguir mais energia da mesma comida que você come: é isso que a cozinha faz, que o cozimento faz. Quando o alimento é cozido, ele é pré-digerido fora do seu corpo, quer dizer quando ele chega na sua boca ele está muito mais macio, fácil de mastigar. Então você leva menos tempo para mastigar o suficiente pra você conseguir engolir. E o mais importante ainda: o alimento cozido você consegue transformar completamente em uma pasta, então, quando ele chega no seu estômago, todas as moléculas estão livres. Então a digestão é completa, a absorção é completa”, afirmou Suzana.
Com o advento da cozinha, os humanos conseguiram superar a limitação enfrentada, por exemplo, por primatas – como gorilas e orangotangos – que não tiveram desenvolvimento do tamanho cerebral significativo no mesmo período comparado com a evolução alcançada pelos humanos. Para suprir as necessidades calóricas, esses animais precisam ainda hoje se alimentar por até oito horas por dia, assim como há 1 milhão de anos. E segundo a teoria, para ter um cérebro maior, os primatas precisariam de ainda mais calorias.
“A suspeita era a de que os primatas tinham chegado naquele ponto quase limite do metabolismo em que eles não têm mais, não conseguem energia suficiente para sustentar, ao mesmo tempo um corpo enorme e um cérebro enorme, comendo só comida crua, que é só o que os outros primatas e todos os outros animais fazem. Eles chegaram numa parede”, explicou a pesquisadora.
Com o uso das técnicas de cozimento de alimentos, os humanos conseguiram inverter as regras de uma equação biológica que predominava até então. Ter um cérebro um maior era um risco muito grande por causa da dificuldade de conseguir mais alimentos, o que poderia simplesmente levar as espécies à extinção. “Com a invenção da cozinha esse cérebro grande deixa de ser um risco e passa a ser uma vantagem porque você tendo um número maior de neurônios possivelmente tem vantagens cognitivas e, além disso, você tem tempo livre para fazer algo mais interessante com o seu cérebro do que simplesmente passar o dia todo pensando em comida e comendo”, concluiu a pesquisadora.
Mas a evolução que levou a espécie humana ao ritmo de vida acelerado nos dias atuais foi acompanhada por uma contradição apontada pela pesquisadora: “Antes, conseguir 2 mil calorias por dia era tão difícil, que chegava a ser um problema. Hoje o problema é você se limitar só às 2 mil calorias por dia. Você consegue comer tudo isso em apenas 15 minutos por causa da comida cozida, por causa da industrialização, por causa de todas as facilidades. E a ironia é que a gente tenta resolver isso voltando pra comida crua, que é a saladinha. A gente hoje tem que aprender a lidar com isso, o que é perfeitamente possível. A gente conhece estratégias para isso, você prestar atenção no que você come.”