“A morte é marcada pelo mistério, pela incerteza, pelo medo daquilo que não se conhece, pois os que a experimentaram não tiveram chances de relatá-la aos que aqui ficaram”, pondera Rodrigo Feliciano Caputo, psicólogo e pesquisador. O assunto inquieta a humanidade desde os tempos mais remotos e desafia as mais distintas culturas, que buscam respostas nos mitos, na filosofia, na arte e nas religiões para tentar compreender o desconhecido fim.
“Na nossa sociedade, cada vez mais ocidentalizada, o homem vê a morte como um tabu”, analisa Franklin Santana Santos, médico geriatra, professor e pesquisador. Para ele, o homem moderno evita encarar o fato de que somos perecíveis, o que é produto e, ao mesmo tempo, sinal dos novos tempos, marcados pela busca pela juventude e crença de que a ciência será capaz de nos fazer eternos. “Hoje, mais do que em nenhuma época, gostaríamos se não de esquecer a morte ou negá-la, pelo menos controlá-la através dos avanços que as ciências biológicas alcançaram nos últimos dois séculos. Muitos de nós temos a esperança de que com o avanço das técnicas de clonagem, em um futuro não muito distante, poderemos viver através dessas mesmas técnicas que poderão nos fornecer um novo corpo e uma nova mente”, destaca Santos.
Enquanto o que ainda soa como enredo de ficção científica não se realiza, o homem, como no filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, continua em desvantagem no jogo contra a morte. “E, apesar dos esforços para afastar a morte do pensamento, como se ao afastá-la da mente fosse possível afastá-la da vida, ela insiste em fazer parte do nosso dia a dia: invade os jornais, os noticiários, ceifa vidas na guerra, na fome, em epidemias, em acidentes de carro... Uma ironia uma vez que quanto mais tentamos negá-la, a morte nos desafia como a esfinge da mitologia: decifra-me ou devoro-te!”, analisa Franklin.
O fim e suas diversas faces
Ao pesquisar a morte em diferentes culturas ao longo da história, o psicólogo Rodrigo Caputo acredita que a maneira como cada grupo se posiciona diante dela tem um papel decisivo na constituição e na manutenção de sua própria identidade coletiva e na formação de uma tradição cultural comum.
O impacto da perda se dá porque o ser humano estabelece interação, vínculos com o grupo, tornando a ruptura algo que desestabiliza tanto a ordem individual quanto a coletiva. “Surge, assim,, a necessidade de reorganização da vida social, a fim de atenuar a dor e o sofrimento dos indivíduos e propiciar o retorno às atividades ordinárias da vida. É para minimizar tal padecimento que todas as culturas conhecidas construíram maneiras individuais e coletivas de enfrentar a morte. As reações do homem diante da morte são tão antigas quanto a humanidade”, analisa o psicólogo.
Sete mil anos antes de Cristo, a sociedade mesopotâmica sepultava seus mortos com tamanho zelo que, juntamente com o corpo, eram postos vários pertences que marcavam a identidade pessoal e familiar do morto: roupas, objetos e até mesmo a sua comida favorita. “Esse cuidado era para garantir que nada lhe faltaria na travessia do mundo da vida para o mundo da morte, implantado no subterrâneo terrestre. Este rito objetivava a representação de morte que os mesopotâmios tinham, que era a de passagem”, destaca Caputo.
Para Sócrates, o mais importante filósofo da antiguidade grega, não havia nada trágico sobre a morte e as pessoas deveriam se despedir da vida em uma atitude de reverência, agradecimento e paz, com paciência e aceitação. Em seus ritos funerários, os gregos costumavam cremar os corpos dos mortos, com o intuito de marcar a nova condição existencial destes, a condição social de mortos. “Havia dois tipos de mortos: os comuns e anônimos e os heróis falecidos. Os primeiros eram cremados e enterrados coletivamente em valas, uma vez que eram vistos como simples mortais. Já o segundo tipo era levado à pira crematória, reservada para os grandes heróis, na cerimônia da bela morte, uma vez que nas representações dos gregos isso os tornava imortal”, explica Caputo.
Os hindus, como os gregos, tinham o costume de incinerar os corpos. Entretanto, o sentido era completamente diferente, pois os gregos cremavam com o intuito das cinzas guardarem a memória dos mortos. Já os hindus cremavam o cadáver, o qual era despojado de sua identidade, personalidade e inserção social. Uma vez consumidas pelo fogo, as cinzas eram lançadas ao vento ou nos rios. “Através desse ritual, os hindus objetivavam a sua representação da morte que consistia na passagem para outro plano da existência: o fundir-se com o Absoluto, o acesso ao Eterno, ao Nirvana, ou seja, à paz originária”, frisa Caputo.
Ao contrário dos gregos, para os hindus a grande personalidade não era o herói, nem o rei, mas os ascetas, os monges. “Estes despojavam a tal ponto de abrir mão dos dois mais poderosos mananciais da vida: o desejo de conservação e de reprodução. Estes não tinham os corpos cremados, mas eram enterrados em posição de meditação, em covas nos lugares sagrados, nos quais eram realizadas peregrinações e indicavam para os hindus que o verdadeiro sentido da vida era o despojamento do corpo, o que resultaria em uma preparação para a morte gloriosa”, explica.
No Egito Antigo, pirâmides, tumbas, múmias, escritos funerários e todo o minucioso processo de mumificação detalhado no “Livro Dos Mortos” testemunham a morte como um dos temas centrais daquela sociedade. A ideia da transcendência está contida nos mitos como o da renascença. Para os egípcios, no momento da morte, a alma era levada a um tribunal na presença da deusa da Justiça, que tinha uma balança: as almas generosas teriam, naturalmente, um coração leve, e as almas dos maus seriam pesadas e, caso fossem condenadas, acabariam devoradas e não poderiam renascer. “A morte, antes considerada um fenômeno natural e aceita sem apreensões e medos, passará a ser temida devido à sua associação com prováveis penalidades que o morto teria que arcar após o seu transpasse e julgamento”, destaca Santos.
Já o espiritismo, doutrina surgida no século 19, não crê na morte como fim e nem a vincula a julgamentos que possam culminar num bem ou mal eternos.
“Talvez, o fator que diferencie o Espiritismo de outras religiões ocidentais seja o entendimento da continuidade da vida do ser essencial: o Espírito. A vida, sendo um contínuo, será sempre oportunidade de aprendizado e progresso para a perfeição, seja na fase que o Espírito esteja no mundo espiritual, seja no retorno ao físico, em nova existência, reencarnado”, explica Paulo Cruz Júnior, engenheiro e estudioso da doutrina.
Tal perspectiva da vida, para Paulo, contribui para uma existência com menos angústia e mais otimista. “Saber da continuidade da vida favorece a compreensão de que o mal existente hoje no futuro será menor, e o bem maior, dado que todos os seres irremediavelmente progridem. Nos conforta saber que os laços afetivos se mantêm, pois somos entes que juntos trilhamos para a perfeição. Facilita o perdão, a sermos indulgentes para as fraquezas alheias e a não julgar comportamentos, criando estados íntimos que predispõe a melhor transitar pela vida. Como estabelece Alan Kardec: ‘Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sempre, tal é a lei’”.