A versatilidade da cerveja

A cerveja cai bem em várias ocasiões e Belém se tornou um mercado promissor para as cervejarias.

14/05/2013 12:11 / Por: Alan Bordallo/ Fotos: Dudu Maroja
A versatilidade da cerveja

Proibido para menores de 18 anos – O grupo de comédia britânico Monty Python, em um show no Hollywood Bowl, em Los Angeles, comparou a cerveja feita nos Estados Unidos a uma relação sexual em uma canoa. “É muito perto da água”, explicou em seguida First Bruce, personagem interpretado por Eric Idle, que distribuiu latas de cerveja para a plateia. A piada, politicamente incorreta, além de uma provocação bem-humorada à rivalidade entre americanos e ingleses, se deu pelo fato de a cerveja dos Estados Unidos ser fraca –tanto na cor, quanto no malte e no teor alcoólico –se comparada à produzida na Inglaterra.

Na época do show –1982 –os Estados Unidos ainda não haviam incluído a cultura cervejeira ao “American Way of Life”, apesar de a história desta bebida alcoólica estar ligada à própria história democrática dos norte-americanos –o hino nacional dos Estados Unidos, por exemplo, é inspirado em uma canção cervejeira, que funcionava como um teste de sobriedade (se a pessoa conseguisse cantar toda a música, era sinal de que ainda aguentaria mais uma cervejinha). Hoje existem várias confrarias e é possível encontrar inúmeros bares e restaurantes com cartas de cervejas nos Estados Unidos, onde o movimento cervejeiro se espalhou rapidamente.

E foi a partir da entrada dessas cervejas no mercado americano que o Brasil aos poucos se abriu para a chegada de novos rótulos, dando início ao declínio do império da American Lager, estilo de cerveja que motivou a piada do Monty Python e que responde por 99% da cerveja consumida no Brasil. Para tentar introduzir o leitor no universo das cervejas especiais e seus gostos, aromas, rótulos e prazeres, a Revista Leal Moreira visitou as “boutiques de cerveja” de Belém, e conversou com especialistas no assunto sobre o qual quase todo mundo opina (ou acha que sabe um pouco).

Autodidatas do mundo, uni-vos!

A cultura da cerveja no Brasil há muito tempo é regida por um dogma: o de que a bebida deve ser servida estupidamente gelada. Esse princípio se aplica bem ao estilo de cerveja consumido majoritariamente, o supracitado American Lager (equivocadamente chamado de Pilsen nos rótulos nacionais), que tem como características marcantes a leveza e refrescância e o objetivo franco de matar a sede. “Tem a ver com a ‘drinkability’, que é como a facilidade de beber a cerveja, de ela entrar bem. Como em Belém é calor, a gente tende para as cervejas leves”, explica Iuri Fernandes, analista de sistemas, fotógrafo profissional e futuro mestre cervejeiro.

Iuri sempre foi chegado a uma breja. Sua primeira incursão aos sabores diferentes se deu pela Bohemia, que de tanto tomar, enjoou.

Considerava-se um conhecedor de cervejas. Até que em 2005, quando morava em Belo Horizonte, viu que estava no topo de um iceberg, e que as profundezas do mar guardavam uma imensidão. “Tomei um chope da Falke e me apaixonei. Depois fui procurar outros, e na época estava acontecendo o BH Home Beer, evento que foi embrião da Associação dos Cervejeiros Artesanais de Minas Gerais (ACervA Mineira). Conheci pessoas, novas cervejas e vi o quanto era ignorante”, diz ele.

O conhecimento que já diferenciava Iuri dos amigos fãs do lúpulo era básico: ele sabia que na Alemanha tinha uma cerveja mais forte, que na Bélgica os monges preparavam sua própria cerveja, mas não passava disso. O economista Wajdy Zaidan também se julgava um especialista.

“Eu achava que sabia tudo porque conhecia todas as piadas de cerveja”, brinca ele, que passou a conhecer este mundo após fazer um curso de sommelier de cervejas. Wajdy associa o desconhecimento do brasileiro sobre a cultura da cerveja a fatores simples. “O Brasil não tem contexto histórico na produção de cerveja porque aqui não se produz lúpulo, que é típico de climas frios. Tentaram iniciar o cultivo no Sul, mas não deu certo. O lúpulo para a produção da cerveja é quase todo importado”, explica.

A necessidade de importar o lúpulo, um dos quatro ingredientes básicos da cerveja (os outros são a cevada, o malte e a água) além de retardar o surgimento da indústria cervejeira no Brasil (que começou em meados de 1960) encareceu o produto e fez, no longo prazo, as marcas nacionais recorrerem a um expediente desonesto. “Passaram a acrescentar cereais não-maltados, o que é permitido, mas excederam a porcentagem. Em testes ficou comprovado que a quantidade de milho excedia 50%. Estávamos bebendo pipoca em vez de cerveja”, completa Wajdy.

As misturas e consequente descaracterização da cerveja condicionaram o hábito de beber ao clima, e se a cerveja não for bem gelada, é difícil sorver um trago. “Não adianta tomar as cervejas industrializadas esperando sentir o malte e conservar o amargor na língua. O objetivo é matar a sede. Se tomar ela quente, vai ser difícil. Fica terrível”, define.

Apurando o paladar

Como café, vinhos, queijos e charutos, a apreciação da cerveja se baseia em todos os sentidos do corpo que o líquido pode aguçar: olfato, paladar e também a visão. Para um cervejeiro se iniciar neste “novo mundo”, não pode se empolgar: algumas cervejas são de difícil compreensão, então é aconselhável que se siga uma escala progressiva, que compreenda os sabores e teores alcoólicos, os níveis de lúpulo e malte e o amargor.

Para isso, os candidatos a apreciadores contam com a ajuda de guias nas casas especializadas em Belém. E eles podem ser Fernando Martins, da Kanguru Beer, e Delano Figueiredo, da Levedo Beer Import.

Delano é contador e há dois anos abriu a Levedo, apostando no crescimento do consumo de cervejas especiais, baseado no interesse que ele próprio demosntrou. “Tomei uma Erdinger que vi no supermercado. Queria sair da mesmice”, lembra ele, que embarcou definitivamente neste mundo após conhecer as cervejas belgas. “A escola belga de cervejas é muito diversificada, tem um grande número de estilos. Vai de uma Premium Lager até cervejas mais requintadas, como a Deus, produzida com levedura de champanhe”, diz ele.

Delano concilia o trabalho em seu escritório com aparições na Levedo, que se tornam mais frequentes às sextas-feiras. É na porta do fim de semana que ele se propõe a receber novos clientes e encaminhá-los na experiência, que, dificilmente, terá uma cerveja belga típica no primeiro passo. “Se eu oferecer uma cerveja muito lupulada para um iniciante ele nunca mais vai à loja. Tem que ser aos poucos, treinando o olfato e o paladar”, diz ele.

Pode parecer “pavulagem”, mas cada cerveja especial tem um copo correspondente. Fernando aprendeu isso quando morou na Bélgica, um dos países com cultura cervejeira mais fortes (lá, por exemplo, a cerveja não figurou entre as bebidas proibidas pela Lei Seca). E o negócio é levado a sério: com estimados dois mil rótulos, nem mesmo cervejarias artesanais domésticas admitem servir as cervejas produzidas com todo esmero em um recipiente inadequado.

Além de um aspecto cultural, a medida tem um viés experimental. “Entra a questão da percepção do sabor, do aroma, da experiência de tomar a cerveja. Uma cerveja trapista, por exemplo, deve ser servida num copo de boca mais larga, para que os toques caramelizados ou de chocolate se desprendam e permitam ser percebidos”, explica Fernando.

Apurar o paladar e os outros sentidos é a proposta das “boutiques de cerveja”, como a Kanguru Beer e a Levedo podem ser definidas. “Sempre digo que isso aqui não é um bar. É um lugar para degustar a cerveja”, diz ele, que constantemente responde aos visitantes da página oficial do Facebook que no local não é permitido falar alto. “Beba menos, beba melhor!”, completa Delano.

Do lúpulo aos sabores regionais

O número de microcervejarias brasileiras teve um crescimento exponencial nos últimos anos. A afirmação é de Caio Guimarães, da Amazon Beer, primeira, e maior microcervejaria do Norte e maior bar de cerveja do Brasil, que registra a venda de 30 mil litros da bebida por mês. O sucesso das cervejas artesanais, que resgatam o verdadeiro sentido desta bebida, neste caso acrescidas de um toque amazônico, fez o negócio da família Guimarães se expandir do balcão e mesas para ganhar prateleiras de supermercados e boutiques de cerveja em todo o país.

A tradição da cerveja vem de três gerações na família de Caio: seu avô, Arlindo Nogueira Guimarães, sempre foi entusiasta da cerveja. Seu pai, Arlindo Nogueira Guimarães Filho, herdou o gosto. “Desde que me entendo por gente, lembro deles apreciando cervejas em festas de família e outras ocasiões”, diz ele. Então, seu pai conseguiu unir a paixão pela cerveja ao empreendedorismo e fundou a Amazon Beer.

A importância da Amazon Beer no contexto das cervejas artesanais é grande: seus princípios são o de nunca imitar produtos estrangeiros, primando pela criação de novos sabores, sempre ligados à Amazônia, fazendo misturas semelhantes entre si. A primeira incursão neste campo se deu em 2002, apenas dois anos após a fundação da cervejaria: a criação da cerveja de Bacuri. “Ganhamos como produto inovador do ano no prêmio Techno Bebida Award”, lembra Caio.

Com grande aceitação do público (especialmente o feminino, pelo sabor delicado e adocicado da bebida), a Bacuri Beer abriu portas para a inventividade de seus proprietários, que anos depois, lançaram outros rótulos originais: Cumaru (do tipo India Pale Ale), Priprioca (do tipo Red Ale), Açaí (do tipo Stout), Taperebá (do tipo Witbier) –além das tradicionais River (do tipo Lager) e Forest (do tipo Pilsen).

Oferecer cervejas produzidas pela casa é uma tendência que os restaurantes de outros estados já vinham adotado, e que já tinha sido lançada pela Amazon Beer. E agora a iniciativa está perto de ganhar adeptos: o empresário Artur Bestene, da Circus, pretende até maio deste ano inaugurar uma microcervejaria junto com um amigo [também cervejeiro]. “Ele também vinha pensando a respeito. Fundimos a ideia e estamos na iminência de abrir uma microcervejaria. Quero fabricar a cerveja que servirei aos meus clientes”, diz.

Artur é um dos que foram fisgados pela paixão que os novos sabores e aromas despertam nos apreciadores de cerveja, e revela que a única coisa próxima de uma contraindicação é a “saúde” monetária. “Eu me senti até obrigado a trabalhar mais, porque me refinei. Não dá mais para voltar pro ‘litrão’. É como se um sommelier de vinho tomasse vinho de qualidade duvidosa”, compara.

Harmonizando

O consumo de cerveja no Brasil ainda é marginalizado em algumas ocasiões, e a chegada de cervejas especiais pode ajudar a quebrar este estigma. “Antes eu era um bebedor comum. Agora passei para entendedor. Os amigos falam: ‘não, agora o cara está estudando’. A cerveja fez minha classe social ascender”, brinca Iuri. Ele cita curiosidades como o fato de a cerveja na Alemanha ser considerada uma bebida comum, servida inclusive em fábricas no horário de expediente e o dos monges belgas sobreviverem 40 dias à base das cervejas feitas nas abadias.

“Isso é um alimento, rapaz”, completa, entre risos, contemplando com carinho uma garrafa de La Trappe, a única –de oito –trapista feita fora da Bélgica.

Para provar que a cerveja cai bem em várias ocasiões, pedimos para que cada um dos personagens desta matéria sugerisse harmonizações entre cervejas de variados estilos e pratos.

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